Dou início a este texto me desculpando com aqueles que curtem um rock mais tradicional. E faço isso por conta do tema de hoje, o álbum "Below The Waste" do grupo britânico "Art Of Noise".
Para aqueles que não sabem, um dia eu já tive um programa de rádio, que se chamava Star Trips e ia ao ar todos os domingos na antiga FM comunitária Star Sul (na região do bairro Vila Santa Catarina, na cidade de São Paulo). E neste programa, o meu intuito era tocar o rock de todos os tempos, estilos e tendências... Certamente, o melhor do rock nacional e internacional passou pela programação musical do Star Trips.
E um dos quadros do programa era aquele que eu costumava chamar de "Fronteiras do Rock", onde eu abordava coisas inusitadas relativas ao mundo do rock. Era um segmento do Star Trips no qual eu mostrava aos ouvintes que música não tem limites e fronteiras e que, muitas vezes, misturas musicais das mais inusitadas davam resultados extraordinários.
E neste sentido, levei ao ar muita coisa diferente em termos de viagens musicais com viés rockeiro, tais quais o rock do Led Zeppelin sendo performado pela Orquestra Sinfônica de Londres (um projeto musical do músico britânico Jazz Colleman); a música do grupo alemão Van Canto (um sensacional grupo musical vocal, o qual faz o som dos principais instrumentos apenas com a voz e com a ajuda de pedais); projetos musicais nacionais tais quais Língua de Trapo, Premeditando Breque e Arrigo Barnabé; Giberto Gil cantando um rock swingado fenomenal; o projeto musical Moda de Rock (dos músicos e violeiros Ricardo Vignini e Zé Helder); a musica viajante do Dead Can Dance; o post punk igualmente viajante do Cocteau Twins... E muito mais...
E a música do Art Of Noise fez parte do Star Trips através de diversas incursões na programação musical que eu elaborava.
Por essas e por outras razões é que estou abordando neste canal cultural a "arte" musical deste sensacional projeto ART OF NOISE... E mais especificamente, o quarto álbum "Below The Waste", trabalho musical pelo qual alimento bastante admiração e carinho. Abaixo, temos a contracapa do disco (na versão em vinil).
ART OF NOISE - UM BREVE RELATO
Cabe aqui contextualizar este projeto musical através, inicialmente, de um breve relato sobre a história do grupo e de seus idealizadores.
O Art Of Noise, em termos de classificação musical, pode ser considerado como um grupo a ser enquadrado na categoria "avant-garde synth-pop". Mas há aqueles que classifiquem sua música apenas como "eletrônica", o que eu, de forma alguma, concordo. Na minha opinião, a música produzida pelo grupo é muito mais profunda do que isso, passando inclusive por momentos que podem até ser classificados como música clássica, jazz moderno, jazz rock ou tantos outros estilos e sub-classificações que surgem aqui e ali dentro das canções. Certamente que o termo "eletrônico" se encaixa no contexto, mas reduzir a música do grupo simplesmente a isso não me soa justo.
O grupo(1) iniciou suas atividades em Londres, no ano de 1983, e foi formado originalmente por um conjunto bastante heterogêneo e inusitado de pessoas do meio musical britânico, a saber, o músico e produtor Trevor Horn, o músico e programador musical J.J. Jeczalik, o engenheiro de som e produtor musical Gary Langan, a compositora, tecladista e maestrina Anne Dudley e o jornalista musical Paul Morley.
Esta formação é a que predomina durante todo o período de atividade do Art Of Noise. O grupo manteve-se bastante ativo durante o período de 1983 até o ano 2000; depois disso reuniu-se apenas em algumas apresentações esporádicas; mas ainda considera-se que é um projeto musical em atividade. Entretanto, houve certa alternância de membros em diversos períodos, sendo que Anne Dudley foi a única integrante que participou de todas as fases do Art Of Noise.
Entre o período 1998-2000, o músico e guitarrista britânico Lol Creme também fez parte do grupo, sendo esta a única fase que não contou com J.J. Jeczalik.
- Notem que em todos os momentos eu me refiro ao Art Of Noise como um "grupo" musical; isto é um critério pessoal meu, pois não os enxergo meramente como uma banda, na medida em que eles não tem uma formação clássica com músicos que tocam guitarra, bateria, baixo, teclados e/ou outros instrumentos. Na minha visão, trata-se muito mais de um projeto musical, algo especial e fora do padrão, razão pela qual não consigo enquadrá-los como uma banda. Isto ficará mais claro no decorrer do texto.
Sempre que falo aos amigos sobre o Art Of Noise, via de regra, quase ninguém conhece. E se já ouviram falar ou mesmo ouviram algumas de suas músicas, estas são certamente a versão deles para "Kiss" (do cantor e compositor Prince), a qual conta com a participação do famoso cantor galês Tom Jones; e outra das músicas mais conhecidas do grupo é a instrumental "Peter Gunn" (composta originalmente pelo músico americano Henry Mancini), a qual lhes rendeu uma premiação no Grammy Award em 1986.
UM POUCO MAIS SOBRE A MÚSICA
Uma das principais características da música produzida pelo Art Of Noise é o uso bastante intenso de "samplers". Além disso, podemos dizer que grande parte das músicas são "colagens musicais", via de regra instrumentais, as quais mostram aos ouvintes passagens sonoras, em alguns casos, bastante díspares, com uma constante alternância melódica e sonora. E isto, certamente, causa bastante estranhamento nas primeiras audições.
Entretanto, é justamente esta alternância melódica e de sons que costuma atrair os fãs, principalmente os mais afeitos à música eletrônica e tecnológica.
Podemos dizer que, em termos tecnológicos, o Art Of Noise é um dos pioneiros em seu estilo, na medida em que Trevor Horn foi uma das primeiras pessoas a adquirir o "Fairlight CMI (Computer Musical Instrument)", uma das primeiras estações de áudio digitais associadas à sintetizadores de som e samplers que foram concebidas mundialmente (equipamentos originários de uma empresa australiana).
Os primeiros trabalhos do grupo foram classificados como "techno-pop" ou ainda "experimental rock".
Além das colagens sonoras, muitos outros elementos foram utilizados nas produções, tais quais vozes de pessoas notórias e trechos modificados de músicas famosas ou temas de filmes.
Outra característica bem forte que podemos sentir ao ouvir as canções é a alternância de melodias ora extremamente dançantes (recheadas de batidas fortes e muito cadenciadas) com outras mais suaves e contemplativas, tudo dentro de uma mesma faixa musical.
BELOW THE WASTE... FINALMENTE
Cheguei finalmente ao objeto da resenha.
Como dito mais acima, o álbum Below The Waste é o quarto trabalho lançado pelo Art Of Noise, sendo que o mesmo foi produzido, gravado e lançado entre 1988 e 1989.
Trata-se de um trabalho que não teve uma grande repercussão entre crítica e público. E talvez isto tenha acontecido por uma certa mudança de rumos em relação aos três trabalhos anteriores.
Na medida em que Anne Dudley e J.J. Jeczalik contaram com a participação do grupo musical sul-africano "Mahlathini and the Mahotella Queens", os quais aparecem em 3 das 12 músicas do disco, o trabalho como um todo acabou sendo considerado por alguns como "world music".
Certamente, o álbum tem algumas canções bem na linha "world music", entretanto eu não o classifico desta forma. Continuo a classificar a música constante deste álbum como "avant-garde synth-pop", uma vez que, o álbum como um todo está recheado de elementos musicais eletrônicos e samples bastante característicos da linha musical que o grupo aborda.
Todavia, concordo com a crítica no sentido de que houve mudanças significativas em relação aos trabalhos anteriores.
Acontece, porém, que tais mudanças de rumo, na minha avaliação, elevou a qualidade musical do Art Of Noise. As canções ficaram mais sofisticadas, mais melodiosas, mais ricas em termos de misturas de ritmos diversos.
Neste trabalho, o Art Of Noise contou apenas com Anne Dudley e J.J. Jeczalik (também assina a produção Ted Hayton).
Coube a Anne Dudley as abordagens musicais mais melodiosas e orquestrais; já J.J. Jeczalik certamente imprimiu um ritmo mais forte e mais dançante ao trabalho, concentrando esforços em colagens e passagens musicais repletas de batidas vigorosas e elementos musicais "funkeados" e também algumas doses de rock n'roll.
Falando agora sobre as canções, esta resenha contempla, na verdade, a versão de Below The Waste lançada originalmente em vinil, a qual tem algumas diferenças em relação a outras edições do disco.
Finalizo esta descrição geral do álbum destacando um detalhe bastante interessante aos amantes de equipamentos de som de alta fidelidade. A capa do disco conta a foto de um par de caixas acústicas estilizadas, fabricadas por uma das mais notórias marcas de equipamentos audiofônicos, a britânica "Bowers & Wilkins" ou simplesmente "B&W". Isto é apenas mais um indicativo de que estamos tratando de um grupo musical diferenciado, que pensa nos mínimos detalhes quando o assunto é a produção de um trabalho musical.
AS MÚSICAS
YEBO!
Canção com fortes elementos da música africana, YEBO! é uma das músicas que conta com o grupo musical "Mahlathini and the Mahotella Queens", o qual alia seu som repleto de arranjos vocais e batidas tribais ao som eletrônico do Art Of Noise. Há ainda algumas passagens musicais que contam com excelentes arranjos e riffs de guitarra, imprimindo uma pegada jazz rock bem interessante.
CATWALK
Excelente canção, repleta de swing e grooves. Lembrou-me os bons tempos da dance e funk music do finalzinho dos anos 1970. Música legal para você colocar no começo da festa; certamente vai fazer a galera se mexer e se intrigar com os diversos elementos sonoros que a tornam misteriosa e sofisticada.
PROMENADE 1
Interlúdio de pouco mais de 30 segundos que contrapõe totalmente a proposta musical da duas primeiras canções; melodiosa ao extremo, a música conta com arranjos orquestrais divinos, porém, tristonhos. Lembra um filme triste.
DILEMMA
Esta é uma das músicas do álbum que mais se enquadram na proposta original do Art Of Noise. Uma sequencia de batidas cadenciadas mescladas por samples de todos os tipos (vozes humanas que cantarolam melodias disformes, relincho de cavalos, cantos gregorianos, gritos e mais um sem número de sons). Tenho para mim que a grande maioria das pessoas vai pular esta música.
ISLAND
Peça musical de quase 6 minutos, Island é um primor de música. Melodia repleta de elementos orquestrais e piano, entremeada por uma batida suave e cativante, a musica certamente leva o ouvinte até uma ilha paradisíaca. No finalzinho da música entram em cena os clarinetes, conferindo à canção um ar clássico estupendo.
DAN DARE
Abrindo o lado B do disco, Dan Dare é mais uma das canções climáticas e enigmáticas do álbum. Porém, esta música equilibra bem os elementos mais melodiosos e orquestrais com batidas e levadas mais dançantes. Outro som que nos propicia momentos bem viajantes.
CHAIN GANG
Mais uma das canções que conta com os sul-africanos do "Mahlathini and the Mahotella Queens". A música começa com vozes femininas entoando um canto africano; logo em seguida entra em cena uma melodia permeada por uma batida em segundo plano, a qual funciona mais ou menos como um mantra percussivo, imutável nos primeiros minutos. Aos poucos a música vai crescendo em termos de vozes, elementos sonoros e instrumentais, até desembocar num arranjo "funkeado" e com riffs de guitarra bastante instigantes e dançantes.
PROMENADE 2
Mais 38 segundos de um lindo interlúdio. Momento para respirar fundo e se preparar para a parte final da viagem, a qual conta ainda com quatro cativantes etapas.
BACK TO BACK
Melodia extremamente cativante, aliando elementos melodiosos e levadas levemente dançantes. Guitarra e batidas proeminentes, esta é sem dúvida a música mais rock n'roll do disco.
FLASHBACK
Música de batida e levada fortemente jazzística, modernosa. Curtinha, com apenas 1 minuto e 45 segundos, quando você começa a gostar ela acaba... uma pena!
SPIT
Esta é a terceira canção do disco que conta com a participação do grupo musical sul-africano. Uma delícia de música. Acho que, dentre aquelas mais dançantes, esta é a que eu mais gostei. Além disso, o trabalho vocal é maravilhoso.
FINALE
Uma verdadeira peça clássica, nesta canção Anne Dudley nos envolve por completo com suas passagens musicais extremamente melodiosas. Trata-se de uma música criada por alguém que certamente tem uma sensibilidade musical das mais nobres. E fecha o disco nos deixando sem chão. Toda vez que a escuto, preciso ficar alguns segundos em silêncio para me recompor.
CONCLUSÃO
Finalizo esta resenha na certeza de que passei a minha mais sincera opinião sobre o ART OF NOISE e sobre esta maravilhosa obra musical contemporânea.
Espero, com este texto, sensibilizar a todos os leitores, de forma que o mesmo os façam querer ouvir o disco. E mais, espero que todos sintam a beleza e a força das canções.
Uma dica:
Numa primeira audição, recomendo estar só, num ambiente agradável, se possível na meia luz, saboreando um bom vinho.
Um forte abraço e até a próxima.
Betão Star Trips